segunda-feira, 25 de abril de 2016

Pedagogia da esperança: a amorosidade e a dialogia necessárias


Adilson Marques - doutor em Educação pela USP, pós-doutorando em Educação e professor visitante na UFSCar
"Hoje não há razões para otimismo.
Hoje só é possível ter esperança.
Esperança é o oposto do otimismo.
Otimismo é quando, sendo primavera do lado de fora, nasce a primavera do lado de dentro.
Esperança é quando, sendo seca absoluta do lado de fora, continuam as fontes a borbulhar dentro do coração.
Camus sabia o que era esperança. São suas as palavras: "e no meio do inverno eu descobri que dentro de mim havia um verão invencível".
Otimismo é alegria "por causa de": coisa humana, natural.
Esperança é alegria "a despeito de": coisa divina. 
O otimismo tem suas raízes no tempo.
A esperança tem suas raízes na eternidade. 
O otimismo se alimenta de grandes coisas. Sem elas, ele morre.
A esperança se alimenta de pequenas coisas. Nas pequenas coisas ela floresce. Basta-lhe um morango à beira do abismo.
Hoje, é tudo o que temos: morangos à beira do abismo, alegrias sem razões. A possibilidade da esperança" (Rubens Alves)  

Paulo Freire (1921-1997) apesar do discurso carismático que possuía e de ser frequentemente  venerado por muitos educadores, também foi alvo de severas críticas, sendo acusado tanto de "elitista" como de "populista". Os marxistas criticam sua obra por não afirmar necessariamente que a "luta de classes é o motor da história". Por outro lado, o movimento anti-marxista o critica por fazer "doutrinação comunista", imputando a Paulo Freire a culpa pela falência da educação brasileira, afirmando que o seu método de alfabetização de jovens e adultos seria o responsável pelo alto índice de analfabetismo funcional no país e também de plágio, pois teria se apropriado do método Laubach, sem citar as necessárias fonte. Estas e outras críticas podem ser facilmente encontradas na internet, em sites e blogs que procuram criticar Paulo Freire, sua obra e seu pensamento.
Um dos livros mais comentados, e não necessariamente lidos, é Pedagogia do Oprimido, cuja primeira edição ocorreu em 1970, registrando as experiências de Paulo Freire no Brasil, no Chile e na Europa, além de apresentar as primeiras sistematizações de sua teoria sobre educação popular. Em 1992, porém, publicou a primeira edição de Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido, livro no qual expõe uma reflexão autobiográfica e memorialista, ao mesmo tempo crítica e compreensiva, revisitando seus conceitos, pontos de vista e experiências políticas e educativas vivenciadas a partir da década de 1940 e que foram fundamentais para a escrita do livro Pedagogia do Oprimido. Esta revisão tem por base as experiências durante o período de redemocratização do país, com fatos marcantes como o impeachment do presidente Collor e sua passagem como secretário de educação em São Paulo (1989-1991).
Como um ser neótono neg-entrópico, ou seja, aberto para o mundo, lúdico-explorador e permanentemente incompleto e inacabado, Paulo Freire faz uma autocrítica, expondo como superou a linguagem machista do livro anterior, e respondendo a várias das críticas normalmente endereçadas ao seu trabalho.
As críticas recentes à Paulo Freire (a partir de 2012), expostas na internet através de sites e blogs estão associadas diretamente à guinada "conservadora" verificada no Brasil, que tem o partido dos trabalhadores (PT) e todas as pessoas relacionadas a ele, como o bode expiatório do momento, os culpados pela crise política, econômica, social e moral brasileira. E Paulo Freire, apesar de sempre se posicionar contra qualquer forma de autoritarismo ou doutrinação, de esquerda ou de direita, acabou sendo envolvido por tais críticas, quase todas superficiais e facilmente refutadas, como se pode compreender pela leitura do livro Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido.
Não de forma saudosista, o livro transita pelo contexto em que o livro Pedagogia do oprimido foi escrito, apresentando constantes reavaliações de pontos de vista através de um diálogo entre dois momentos históricos separados por quase 30 anos. Mais do que um estudo comparativo desses dois momentos, o livro expõe o amadurecimento pessoal, político e também como educador de Paulo Freire, mas mantendo um ponto central inabalável: o devotamento à tolerância, a marca profunda de sua vida e pensamento.
Curiosamente, hoje, em 2016, ao lermos o livro Pedagogia da esperança, não parece que já se passaram 24 anos de sua primeira edição. Os fatos políticos atuais lembram muito os de 1992 e também os da década de 1960. E se em 1992 acontecia o impeachment de Collor, hoje vivenciamos o da presidente Dilma. A corrupção, presente na ditadura militar, na década de 1990 e ainda hoje, continua a manchar e a caracterizar a vida pública no Brasil, nos governos de direita ou de esquerda. Os extremismos políticos  voltam a ganhar força diante de mais uma crise econômica e moral, na qual políticos investigados por corrupção tentam cassar uma presidente que supostamente cometeu um crime de responsabilidade fiscal que, até recentemente, era prática administrativa reconhecida pelo Tribunal de Contas da União (TCU), sendo utilizada por presidentes que a antecederam.
Com a crescente intolerância por quem pensa diferente, seja na religião, na política e até mesmo no futebol, nossa frágil democracia parece não ser capaz de se sustentar, deixando pouca margem de atuação para quem se propõe a refletir sobre sonho e utopia, as "armas" que Paulo Freire nos apresenta, envolto em esperança e crença na possibilidade das mudanças pelas quais ele sempre defendeu: a amorosidade nas relações e o diálogo fratriarcal entre todos, respeitando as diferenças. Mas, se está difícil ser otimista, nos resta a esperança que Paulo Freire pensava e a vivenciava como um imperativo existencial e histórico.
E nesse reencontro existencial com a Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire relata duas experiências fundamentais para o nascimento de sua teoria e método:
A primeira foi a fala de um operário, na década de 1960 (que não iremos aqui reproduzir, mas que se encontra presente no texto supracitado),.após fazer uma palestra para pais de alunos do SESI, onde trabalhava, abordando o tema da autoridade e da liberdade, enfatizando a questão dos castigos e prêmios na educação. Essa fala foi de fundamental importância para que ele passasse a respeitar a vida concreta das pessoas. Paulo Freire afirma ter jamais esquecido tal fala e que foi sua esposa Elza que o fez compreender a necessidade de entender as pessoas e não apenas ser entendido por elas. Sobre essa questão, ele nos narra:

Nas idas e vindas da fala, na sintaxe operária, na prosódia, nos movimentos do corpo, nas mãos do orador, nas metáforas tão comuns ao discurso popular, ele chamava a atenção do educador ali em frente, sentado, calado, se afundando em sua cadeira, para a necessidade de que, ao fazer o seu discurso ao povo, o educador esteja a par da compreensão do mundo que o povo esteja tendo. Compreensão do mundo que, condicionada pela realidade concreta que em parte a explica, pode começar a mudar através da mudança do concreto. Mais ainda, compreensão do mundo que pode começar a mudar no momento mesmo em que o desvelamento da realidade concreta vai deixando expostas as razões de ser da própria compreensão tida até então.
A mudança da compreensão, de importância fundamental, não significa, porém, ainda, a mudança do concreto.
O fato de jamais haver esquecido a trama em que se deu aquele discurso é significativo. O discurso daquela noite longínqua se vem pondo diante de mim como se fosse um texto escrito, um ensaio que eu devesse constantemente revisitar. Na verdade, ele foi o ponto culminante no aprendizado há muito iniciado – o de que o educador ou a educadora progressista, ainda quando, às vezes, tenha de falar ao povo, deve ir transformando o ao em com o povo. E isso implica o respeito ao "saber de experiência feito” de que sempre falo, somente a partir do qual é possível superá-la. (p. 14)
Essa abertura compreensiva ao outro, respeitando seus pontos de vista, saberes e experiências foi de tal forma interiorizado que passou a ser a essência do trabalho pedagógico proposto por Paulo Freire, que, ao invés de doutrinar ou passar conteúdos, visa valorizar a amorosidade e a dialogia na relação pedagógica.
E essa fala tão paradigmática desse operário se juntou ao sofrimento vivenciado entre os 22 e 29 anos de idade. A superação desse sofrimento existencial se deu quando conseguiu se "distanciar" do problema e meditar sobre o mesmo. Paulo Freire afirma a esse respeito:
Quando o mal-estar era pressentido, eu procurava ver o que havia em torno de mim, procurava roer e relembrar o que ocorrera no dia anterior. Reescutar o que dissera e a quem dissera, o que ouvira e de quem ouvira. Em última análise, comecei a tomar meu mal-estar como objeto de minha curiosidade. "Tornava distância” dele para apreender sua razão de ser. Eu precisava, no fundo, de iluminar a trama em que ele se gerava. (p. 15)

Este sofrimento só foi superado, conta Paulo Freire, após fazer uma "arqueologia" da dor que sentia, voltando ao passado, a Jaboatão, onde nasceu, e reviver sua infância e a morte do pai. Posteriormente, essa superação do sofrimento foi importante também para compreender o problema vivido por muitos exilados que conheceu:
Na verdade, um dos sérios problemas do exilado ou exilada está em como lidar, de corpo inteiro, com sentimentos, desejos, razão, recordação, conhecimentos acumulados, visões do mundo, com a tensão entre o hoje sendo vivido na realidade de empréstimo e o ontem, no seu contexto de origem, de que chegou carregado de marcas fundamentais. No fundo, como preservar sua identidade na relação entre a ocupação indispensável no novo contexto e a pré-ocupação em que o de origem deve constituir-se. Como lidar com a saudade sem permitir que ela vire nostalgia. Como inventar novas formas de viver e de conviver numa cotidianidade estranha, superando assim ou reorientando uma compreensível tendência do exilado ou da exilada de, não podendo deixar de tomar, pelo menos por largo tempo, seu contexto de origem como referência, considerá-la sempre melhor do que o de empréstimo. Às vezes, é melhor mesmo, mas nem sempre o é. (p. 17)

Essa relação entre o Eu e o Outro, tão cara ao discurso fenomenológico e existencial, marca profundamente também o discurso político e pedagógico de Paulo Freire, afastando-o de todo fatalismo, seja o conservador ("Deus quer que seja assim e não se pode fazer nada") ou o de esquerda ("o socialismo é inexorável e vai acontecer, não precisamos fazer nada"). A violência verificada em Pernambuco, tanto em Recife, como no Agreste e também na suposta "liberdade" vivida pelos caiçaras, levou Paulo Freire a compreender que a educação é subjugada pela sociedade global e, a partir dessa perspectiva,  propõe uma pedagogia que não se vincula nem ao voluntarismo de setores da esquerda e nem fica refém do objetivismo mecanicista das pedagogias conservadoras. Enquanto a primeira é uma espécie de "idealismo brigão" e a segunda uma "negação da subjetividade", a proposta de Paulo Freire procura nem atribuir à educação um poder que ela não tem e nem negar qualquer poder a ela. Podemos notar que, a todo momento, Paulo Freire procura fugir de todo e qualquer reducionismo dicotomizador. A mesma lógica aparece quando discute as relações autoridade-liberdade. Para Paulo Freire, ao negar à liberdade o direito de afirmar-se, exacerbamos a autoridade, mas, atrofiando esta, hipertrofiar aquela. Em suma, os dois extremos podem levar à tirania da liberdade ou à tirania da autoridade, ambas nocivas à incipiente e constantemente ameaçada democracia brasileira.
E, ao contrário do que muitos de seus críticos afirmam, a proposta de educação popular proposta por Paulo Freire não foi abraçada por comunistas ou outros grupos de esquerda mais propensos à doutrinação do que à educação. Em 1982, Paulo Freire afirmava sobre a experiência que o levou a propor a pedagogia do oprimido:
Hoje, passados quase trinta anos, se percebe facilmente o que só alguns percebiam e já defendiam na época e eram às vezes considerados sonhadores, utópicos, idealistas, quando não “vendidos aos gringos”. Que só uma política radical, jamais, porém, sectária, buscando a unidade na diversidade das forças progressistas, poderia lutar por uma democracia capaz de fazer frente ao poder e à virulência da direita. Vivia-se, porém, a intolerância, a negação das diferenças. A tolerância não era o que deve ser: a virtude revolucionária que consiste na convivência com os diferentes para que se possa melhor lutar contra os antagônicos. (p. 20)
E, a partir de sua experiência com a educação popular no Chile, através dos "círculos de cultura", Paulo Freire expõe sua divergência com a pedagogia doutrinante, que alguns de seus críticos tentam imputar à sua obra, apontando o que chama de "equívocos" cometidos por intelectuais de esquerda que ignoram o papel da linguagem e que não escapam da "incontenção verbal":
uma das tarefas da educação democrática e popular, da Pedagogia da esperança – a de possibilitar nas classes populares o desenvolvimento de sua linguagem, jamais pelo blablablá autoritário e sectário dos “educadores”, de sua linguagem, que, emergindo da e voltando-se sobre sua realidade, perfile as conjecturas, os desenhos, as antecipações do mundo novo. Está aqui uma das questões centrais da educação popular – a da linguagem como caminho de invenção da cidadania. (p. 20)
A proposta de Paulo Freire de transformar o educando em um "sujeito cognoscente" e não como a "incidência do discurso do educador" é o que transforma o ato de ensinar em uma ação política emancipadora ou libertária que transcende o sectarismo e o fatalismo de esquerda, que tanto incomodava Freire, como nessa passagem elucidativa:

Na verdade, o clima preponderante entre as esquerdas era o do sectarismo que, ao mesmo tempo em que nega a história como possibilidade, gera e proclama uma espécie de “fatalismo libertador”. O socialismo chega necessariamente... por isso é que, se levarmos às últimas consequências a compreensão da história enquanto "fatalismo libertador”, prescindiremos da luta, do empenho para a criação do socialismo democrático, enquanto empreitada histórica. Somem, assim, a ética da luta e a boniteza da briga. Creio, mais do que creio estou convencido, de que nunca necessitamos tanto de posições radicais, no sentido em que entendo radicalidade na Pedagogia do oprimido, quanto hoje. Para superarmos, de um lado, os sectarismos fundados nas verdades universais e únicas; do outro, as acomodações "pragmáticas” aos fatos, como se eles tivessem virado imutáveis, tão ao gosto de posições modernas, os primeiros, e modernistas, as segundas, temos de ser pós-modernamente radicais e utópicos. (p. 27)

A partir da página 34 Paulo Freire começa a revisão do livro pedagogia do oprimido, apontando, entre outros problemas, a linguagem machista que o mesmo trazia, reconhecendo esse "erro" e buscando superá-lo. Mas também questiona a suposta difícil leitura do livro. Sua fala revela que ele não era adepto do estudo sem compromisso, como alguns de seus críticos afirmam. Na passagem abaixo, pode se notar sua enfática defesa do ato de estudar como algo que exige compromisso e dedicação:
Ler um texto é algo mais sério, mais demandante. Ler um texto não é "passear” licenciosamente, pachorrentamente, sobre as palavras. É apreender como se dão às relações entre as palavras na composição do discurso. É tarefa de sujeito crítico, humilde, determinado.
Ler, enquanto estudo, é um processo difícil, até penoso, às vezes, mas sempre prazeroso também. Implica que o(a) leitor(a) se adentre na intimidade do texto para apreender sua mais profunda significação. Quanto mais fazemos este exercício disciplinadamente, vencendo todo desejo de fuga da leitura, tanto mais nos preparamos para tornar futuras leituras menos difíceis.
Ler um texto, sobretudo, exige de quem o faz, estar convencido de que as ideologias não morreram. Por isso mesmo, a de que o texto se acha empapado ou, às vezes nele se acha escondida, não é necessariamente, a de quem vai lê-lo. Daí a necessidade que tem o leitor ou a leitora de uma postura aberta e crítica, radical e não sectária, sem a qual se fecha ao texto e se proíbe de com ele aprender algo porque o texto talvez defenda posições antagônicas às do(a) leitor(a). Às vezes, o que é irônico, as posições são apenas diferentes.
Em muitos casos nem sequer temos lido a autora ou o autor. Temos lido sobre ela ou ele e, sem a ela ou a ele ir, aceitamos as críticas que lhe são feitas. Assumimo-las como nossas. (p. 40)
Para encerrar esta primeira reflexão sobre a atualidade da proposta de Paulo Freire e do equívoco da crítica que tenta impor a Paulo Freire a culpa por uma educação doutrinante ou alienante, podemos citar duas frases exemplares que demonstram que ele apesar de sonhador e progressista, não aceitava o mundo iconoclástico e pasteurizado proposto pelos autoritários de "direita" ou de "esquerda":
O que se exige eticamente de educadoras e educadores progressistas é que, coerentes com seu sonho democrático, respeitem os educandos e jamais, por isso mesmo, os manipulem. (p. 42)


Criticar a arrogância, o autoritarismo de intelectuais de esquerda ou de direita, no fundo, da mesma forma reacionários, que se julgam proprietários, os primeiros, do saber revolucionário, os segundos, do saber conservador; criticar o comportamento de universitários que pretendem conscientizar trabalhadores rurais e urbanos sem com eles se conscientizar também; criticar um indisfarçável ar de messianismo, no fundo ingênuo, de intelectuais que, em nome da libertação das classes trabalhadoras, impõem ou buscam impor a “superioridade” de seu saber acadêmico às "incultas massas”, isto sempre fiz. E disto falei quase exaustivamente na Pedagogia do oprimido. E disto falo agora, com a mesma força, na Pedagogia da esperança. (p. 41)