Adilson Marques - doutor em Educação pela USP,
pós-doutorando em Educação e professor visitante na UFSCar
"Hoje não há
razões para otimismo.
Hoje só é possível ter esperança.
Esperança é o oposto do otimismo.
Otimismo é quando, sendo primavera do
lado de fora, nasce a primavera do lado de dentro.
Esperança é quando, sendo seca absoluta
do lado de fora, continuam as fontes a borbulhar dentro do coração.
Camus sabia o que era esperança. São
suas as palavras: "e no meio do inverno eu descobri que dentro de mim
havia um verão invencível".
Otimismo é alegria "por causa
de": coisa humana, natural.
Esperança é alegria "a despeito
de": coisa divina.
O otimismo tem suas raízes no tempo.
A esperança tem suas raízes na
eternidade.
O otimismo se alimenta de grandes
coisas. Sem elas, ele morre.
A esperança se alimenta de pequenas
coisas. Nas pequenas coisas ela floresce. Basta-lhe um morango à beira do abismo.
Hoje, é tudo o que temos: morangos à
beira do abismo, alegrias sem razões. A possibilidade da esperança"
(Rubens Alves)
Paulo Freire
(1921-1997) apesar do discurso carismático que possuía e de ser frequentemente venerado por muitos educadores, também foi
alvo de severas críticas, sendo acusado tanto de "elitista" como de
"populista". Os marxistas criticam sua obra por não afirmar necessariamente
que a "luta de classes é o motor da história". Por outro lado, o
movimento anti-marxista o critica por fazer "doutrinação comunista",
imputando a Paulo Freire a culpa pela falência da educação brasileira, afirmando
que o seu método de alfabetização de jovens e adultos seria o responsável pelo alto
índice de analfabetismo funcional no país e também de plágio, pois teria se
apropriado do método Laubach, sem citar as necessárias fonte. Estas e outras
críticas podem ser facilmente encontradas na internet, em sites e blogs que
procuram criticar Paulo Freire, sua obra e seu pensamento.
Um dos livros
mais comentados, e não necessariamente lidos, é Pedagogia do Oprimido, cuja primeira edição ocorreu em 1970,
registrando as experiências de Paulo Freire no Brasil, no Chile e na Europa,
além de apresentar as primeiras sistematizações de sua teoria sobre educação
popular. Em 1992, porém, publicou a primeira edição de Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido,
livro no qual expõe uma reflexão autobiográfica e memorialista, ao mesmo tempo
crítica e compreensiva, revisitando seus conceitos, pontos de vista e experiências
políticas e educativas vivenciadas a partir da década de 1940 e que foram fundamentais
para a escrita do livro Pedagogia do
Oprimido. Esta revisão tem por base as experiências durante o período de
redemocratização do país, com fatos marcantes como o impeachment do presidente Collor e sua passagem como secretário de
educação em São Paulo (1989-1991).
Como um ser neótono neg-entrópico, ou seja, aberto para
o mundo, lúdico-explorador e permanentemente incompleto e inacabado, Paulo
Freire faz uma autocrítica, expondo como superou a linguagem machista do livro
anterior, e respondendo a várias das críticas normalmente endereçadas ao seu
trabalho.
As críticas
recentes à Paulo Freire (a partir de 2012), expostas na internet através de sites
e blogs estão associadas diretamente à guinada "conservadora"
verificada no Brasil, que tem o partido dos trabalhadores (PT) e todas as
pessoas relacionadas a ele, como o bode expiatório do momento, os culpados pela
crise política, econômica, social e moral brasileira. E Paulo Freire, apesar de
sempre se posicionar contra qualquer forma de autoritarismo ou doutrinação, de
esquerda ou de direita, acabou sendo envolvido por tais críticas, quase todas
superficiais e facilmente refutadas, como se pode compreender pela leitura do
livro Pedagogia da esperança: um
reencontro com a pedagogia do oprimido.
Não de forma
saudosista, o livro transita pelo contexto em que o livro Pedagogia do oprimido foi escrito, apresentando constantes
reavaliações de pontos de vista através de um diálogo entre dois momentos
históricos separados por quase 30 anos. Mais do que um estudo comparativo desses
dois momentos, o livro expõe o amadurecimento pessoal, político e também como
educador de Paulo Freire, mas mantendo um ponto central inabalável: o
devotamento à tolerância, a marca profunda de sua vida e pensamento.
Curiosamente,
hoje, em 2016, ao lermos o livro Pedagogia
da esperança, não parece que já se passaram 24 anos de sua primeira edição.
Os fatos políticos atuais lembram muito os de 1992 e também os da década de
1960. E se em 1992 acontecia o impeachment de Collor, hoje vivenciamos o da
presidente Dilma. A corrupção, presente na ditadura militar, na década de 1990
e ainda hoje, continua a manchar e a caracterizar a vida pública no Brasil, nos
governos de direita ou de esquerda. Os extremismos políticos voltam a ganhar força diante de mais uma crise
econômica e moral, na qual políticos investigados por corrupção tentam cassar
uma presidente que supostamente cometeu um crime de responsabilidade fiscal
que, até recentemente, era prática administrativa reconhecida pelo Tribunal de
Contas da União (TCU), sendo utilizada por presidentes que a antecederam.
Com a
crescente intolerância por quem pensa diferente, seja na religião, na política
e até mesmo no futebol, nossa frágil democracia parece não ser capaz de se
sustentar, deixando pouca margem de atuação para quem se propõe a refletir sobre
sonho e utopia, as "armas" que Paulo Freire nos apresenta, envolto em
esperança e crença na possibilidade das mudanças pelas quais ele sempre defendeu:
a amorosidade nas relações e o diálogo fratriarcal entre todos, respeitando as
diferenças. Mas, se está difícil ser otimista, nos resta a esperança que Paulo
Freire pensava e a vivenciava como um imperativo existencial e histórico.
E nesse
reencontro existencial com a Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire relata duas experiências
fundamentais para o nascimento de sua teoria e método:
A primeira
foi a fala de um operário, na década de 1960 (que não iremos aqui reproduzir,
mas que se encontra presente no texto supracitado),.após fazer uma palestra
para pais de alunos do SESI, onde trabalhava, abordando o tema da autoridade e da
liberdade, enfatizando a questão dos castigos e prêmios na educação. Essa fala
foi de fundamental importância para que ele passasse a respeitar a vida
concreta das pessoas. Paulo Freire afirma ter jamais esquecido tal fala e que
foi sua esposa Elza que o fez compreender a necessidade de entender as pessoas
e não apenas ser entendido por elas. Sobre essa questão, ele nos narra:
Nas idas e
vindas da fala, na sintaxe operária, na prosódia, nos movimentos do corpo, nas
mãos do orador, nas metáforas tão comuns ao discurso popular, ele chamava a
atenção do educador ali em frente, sentado, calado, se afundando em sua
cadeira, para a necessidade de que, ao fazer o seu discurso ao povo, o educador
esteja a par da compreensão do mundo que o povo esteja tendo. Compreensão do
mundo que, condicionada pela realidade concreta que em parte a explica, pode
começar a mudar através da mudança do concreto. Mais ainda, compreensão do mundo
que pode começar a mudar no momento mesmo em que o desvelamento da realidade
concreta vai deixando expostas as razões de ser da própria compreensão tida até
então.
A mudança da
compreensão, de importância fundamental, não significa, porém, ainda, a mudança
do concreto.
O fato de jamais haver esquecido a trama em que se deu aquele
discurso é significativo. O discurso daquela noite longínqua se vem pondo
diante de mim como se fosse um texto escrito, um ensaio que eu devesse
constantemente revisitar. Na verdade, ele foi o ponto culminante no aprendizado
há muito iniciado – o de que o educador ou a educadora progressista, ainda
quando, às vezes, tenha de falar ao povo, deve ir transformando o ao em
com o povo. E isso implica o respeito ao "saber de experiência
feito” de que sempre falo, somente a partir do qual é possível superá-la. (p.
14)
Essa abertura
compreensiva ao outro, respeitando seus pontos de vista, saberes e experiências
foi de tal forma interiorizado que passou a ser a essência do trabalho
pedagógico proposto por Paulo Freire, que, ao invés de doutrinar ou passar
conteúdos, visa valorizar a amorosidade e a dialogia na relação pedagógica.
E essa fala
tão paradigmática desse operário se juntou ao sofrimento vivenciado entre os 22
e 29 anos de idade. A superação desse sofrimento existencial se deu quando
conseguiu se "distanciar" do problema e meditar sobre o mesmo. Paulo
Freire afirma a esse respeito:
Quando o mal-estar era pressentido, eu procurava ver o que havia
em torno de mim, procurava roer e relembrar o que ocorrera no dia anterior.
Reescutar o que dissera e a quem dissera, o que ouvira e de quem ouvira. Em
última análise, comecei a tomar meu mal-estar como objeto de minha curiosidade.
"Tornava distância” dele para apreender sua razão de ser. Eu precisava, no
fundo, de iluminar a trama em que ele se gerava. (p. 15)
Este sofrimento só foi
superado, conta Paulo Freire, após fazer uma "arqueologia" da dor que
sentia, voltando ao passado, a Jaboatão, onde nasceu, e reviver sua infância e
a morte do pai. Posteriormente, essa superação do sofrimento foi importante
também para compreender o problema vivido por muitos exilados que conheceu:
Na verdade, um dos sérios problemas do exilado ou exilada está em
como lidar, de corpo inteiro, com sentimentos, desejos, razão, recordação, conhecimentos
acumulados, visões do mundo, com a tensão entre o hoje sendo vivido na
realidade de empréstimo e o ontem, no seu contexto de origem, de que chegou
carregado de marcas fundamentais. No fundo, como preservar sua identidade na
relação entre a ocupação indispensável no novo contexto e a pré-ocupação
em que o de origem deve constituir-se. Como lidar com a saudade sem
permitir que ela vire nostalgia. Como inventar novas formas de viver e de
conviver numa cotidianidade estranha, superando assim ou reorientando uma
compreensível tendência do exilado ou da exilada de, não podendo deixar de
tomar, pelo menos por largo tempo, seu contexto de origem como referência,
considerá-la sempre melhor do que o de empréstimo. Às vezes, é melhor mesmo,
mas nem sempre o é. (p. 17)
Essa relação
entre o Eu e o Outro, tão cara ao discurso fenomenológico e existencial, marca
profundamente também o discurso político e pedagógico de Paulo Freire,
afastando-o de todo fatalismo, seja o conservador ("Deus quer que seja
assim e não se pode fazer nada") ou o de esquerda ("o socialismo é
inexorável e vai acontecer, não precisamos fazer nada"). A violência
verificada em Pernambuco, tanto em Recife, como no Agreste e também na suposta
"liberdade" vivida pelos caiçaras, levou Paulo Freire a compreender
que a educação é subjugada pela sociedade global e, a partir dessa perspectiva,
propõe uma pedagogia que não se vincula
nem ao voluntarismo de setores da esquerda e nem fica refém do objetivismo
mecanicista das pedagogias conservadoras. Enquanto a primeira é uma espécie de
"idealismo brigão" e a segunda uma "negação da
subjetividade", a proposta de Paulo Freire procura nem atribuir à educação um poder
que ela não tem e nem negar qualquer poder a ela. Podemos notar que, a todo
momento, Paulo Freire procura fugir de todo e qualquer reducionismo
dicotomizador. A mesma lógica aparece quando discute as relações
autoridade-liberdade. Para Paulo Freire, ao negar à liberdade o direito de
afirmar-se, exacerbamos a autoridade, mas, atrofiando esta, hipertrofiar
aquela. Em suma, os dois extremos podem levar à tirania da liberdade ou à tirania
da autoridade, ambas nocivas à incipiente e constantemente ameaçada democracia
brasileira.
E, ao
contrário do que muitos de seus críticos afirmam, a proposta de educação
popular proposta por Paulo Freire não foi abraçada por comunistas ou outros
grupos de esquerda mais propensos à doutrinação do que à educação. Em 1982,
Paulo Freire afirmava sobre a experiência que o levou a propor a pedagogia do
oprimido:
Hoje, passados quase trinta anos, se percebe facilmente o que só
alguns percebiam e já defendiam na época e eram às vezes considerados
sonhadores, utópicos, idealistas, quando não “vendidos aos gringos”. Que só uma
política radical, jamais, porém, sectária, buscando a unidade na diversidade
das forças progressistas, poderia lutar por uma democracia capaz de fazer
frente ao poder e à virulência da direita. Vivia-se, porém, a intolerância, a
negação das diferenças. A tolerância não era o que deve ser: a virtude
revolucionária que consiste na convivência com os diferentes para que se possa
melhor lutar contra os antagônicos. (p. 20)
E, a partir
de sua experiência com a educação popular no Chile, através dos "círculos
de cultura", Paulo Freire expõe sua divergência com a pedagogia
doutrinante, que alguns de seus críticos tentam imputar à sua obra, apontando o
que chama de "equívocos" cometidos por intelectuais de esquerda que
ignoram o papel da linguagem e que não escapam da "incontenção
verbal":
uma das tarefas da educação democrática e popular, da Pedagogia
da esperança – a de possibilitar nas classes populares o desenvolvimento de
sua linguagem, jamais pelo blablablá autoritário e sectário dos “educadores”,
de sua linguagem, que, emergindo da e voltando-se sobre sua realidade, perfile
as conjecturas, os desenhos, as antecipações do mundo novo. Está aqui uma das
questões centrais da educação popular – a da linguagem como caminho de invenção
da cidadania. (p. 20)
A
proposta de Paulo Freire de transformar o educando em um "sujeito
cognoscente" e não como a "incidência do discurso do educador" é
o que transforma o ato de ensinar em uma ação política emancipadora ou
libertária que transcende o sectarismo e o fatalismo de esquerda, que tanto
incomodava Freire, como nessa passagem elucidativa:
Na verdade, o clima preponderante entre as esquerdas era o do
sectarismo que, ao mesmo tempo em que nega a história como possibilidade, gera
e proclama uma espécie de “fatalismo libertador”. O socialismo chega
necessariamente... por isso é que, se levarmos às últimas consequências a
compreensão da história enquanto "fatalismo libertador”, prescindiremos da
luta, do empenho para a criação do socialismo democrático, enquanto empreitada
histórica. Somem, assim, a ética da luta e a boniteza da briga. Creio, mais do
que creio estou convencido, de que nunca necessitamos tanto de posições
radicais, no sentido em que entendo radicalidade na Pedagogia do oprimido, quanto
hoje. Para superarmos, de um lado, os sectarismos fundados nas verdades
universais e únicas; do outro, as acomodações "pragmáticas” aos fatos,
como se eles tivessem virado imutáveis, tão ao gosto de posições modernas, os
primeiros, e modernistas, as segundas, temos de ser pós-modernamente radicais e
utópicos. (p. 27)
A partir da página 34 Paulo
Freire começa a revisão do livro pedagogia do oprimido, apontando, entre outros
problemas, a linguagem machista que o mesmo trazia, reconhecendo esse
"erro" e buscando superá-lo. Mas também questiona a suposta difícil
leitura do livro. Sua fala revela que ele não era adepto do estudo sem
compromisso, como alguns de seus críticos afirmam. Na passagem abaixo, pode se
notar sua enfática defesa do ato de estudar como algo que exige compromisso e
dedicação:
Ler um texto é algo mais sério, mais demandante. Ler um texto não
é "passear” licenciosamente, pachorrentamente, sobre as palavras. É
apreender como se dão às relações entre as palavras na composição do discurso.
É tarefa de sujeito crítico, humilde, determinado.
Ler, enquanto estudo, é um processo difícil, até penoso, às vezes,
mas sempre prazeroso também. Implica que o(a) leitor(a) se adentre na
intimidade do texto para apreender sua mais profunda significação. Quanto mais
fazemos este exercício disciplinadamente, vencendo todo desejo de fuga da
leitura, tanto mais nos preparamos para tornar futuras leituras menos difíceis.
Ler um texto, sobretudo, exige de quem o faz, estar convencido de
que as ideologias não morreram. Por isso mesmo, a de que o texto se acha
empapado ou, às vezes nele se acha escondida, não é necessariamente, a de quem
vai lê-lo. Daí a necessidade que tem o leitor ou a leitora de uma postura
aberta e crítica, radical e não sectária, sem a qual se fecha ao texto e se
proíbe de com ele aprender algo porque o texto talvez defenda posições
antagônicas às do(a) leitor(a). Às vezes, o que é irônico, as posições são
apenas diferentes.
Em muitos casos nem sequer temos lido a autora ou o autor. Temos
lido sobre ela ou ele e, sem a ela ou a ele ir, aceitamos as críticas que lhe
são feitas. Assumimo-las como nossas. (p. 40)
Para encerrar esta primeira
reflexão sobre a atualidade da proposta de Paulo Freire e do equívoco da
crítica que tenta impor a Paulo Freire a culpa por uma educação doutrinante ou
alienante, podemos citar duas frases exemplares que demonstram que ele apesar
de sonhador e progressista, não aceitava o mundo iconoclástico e pasteurizado
proposto pelos autoritários de "direita" ou de "esquerda":
O que se
exige eticamente de educadoras e educadores progressistas é que, coerentes com
seu sonho democrático, respeitem os educandos e jamais, por isso mesmo, os
manipulem. (p. 42)
Criticar a
arrogância, o autoritarismo de intelectuais de esquerda ou de direita, no
fundo, da mesma forma reacionários, que se julgam proprietários, os primeiros,
do saber revolucionário, os segundos, do saber conservador; criticar o comportamento
de universitários que pretendem conscientizar trabalhadores rurais e urbanos
sem com eles se conscientizar também; criticar um indisfarçável ar de
messianismo, no fundo ingênuo, de intelectuais que, em nome da libertação das
classes trabalhadoras, impõem ou buscam impor a “superioridade” de seu saber
acadêmico às "incultas massas”, isto sempre fiz. E disto falei quase
exaustivamente na Pedagogia do oprimido. E disto falo agora, com a mesma
força, na Pedagogia da esperança. (p.
41)
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