domingo, 20 de novembro de 2016

Descartes e o cartesianismo


Adilson Marques - asamar_sc@hotmail.com

para meu amigo Moab José

Não é possível compreender a filosofia e o método científico proposto por René Descartes (1596-1650) sem compreender a estrutura metafísica de seu pensamento, o que aparece de forma mais evidente no texto Meditações (1641), mas também no Discurso do Método (1637).  E a suposta separação entre espírito e corpo, atribuída a Descartes, é real, pois ele defende que o espírito sobrevive à morte física, logo, seriam duas entidades distintas. Porém, durante a vida encarnada, afirma que o espírito que é indivisível se encontra tão misturado ao corpo, que seria divisível, que é praticamente impossível separar o que é de um e o que é de outro, abordando, inclusive, a influência dos estados emocionais, como a alegria e a tristeza, sobre o corpo físico, em seu estudo sobre as paixões (1649).
 As seis meditações nas quais coloca em prática o seu método de estudo são as seguintes:
Na apresentação  do texto,  ele apresenta seu objetivo: provar racionalmente a sobrevivência do espírito após a morte e a existência de Deus;
Na primeira, abordará as coisas que podem ser colocadas em dúvida, como as informações que nos vem pelos sentidos ou pela imaginação e que formam as opiniões de maneira geral;
Na segunda, a partir de seus argumentos racionais e metódicos, procura demonstrar que o espírito é independente do corpo e que o pensamento é o seu atributo;
Na terceira, aprofunda sua reflexão, rompendo com o solipsismo ao concluir que o mundo exterior ou material existe e que Deus existe, sendo o criador do universo e inclusive do ser humano;
Na quarta, partindo da premissa que Deus é perfeito e bom e não um enganador, abordará que o verdadeiro e o falso não é obra de Deus, mas do mal uso do livre-arbítrio pelo ser humano;
Na quinta, iniciará sua reflexão sobre o mundo material concluindo que a essência das coisas materiais foi instituída por  Deus e não pelo pensamento humano e, por fim,
Na sexta, conclui pela existência do mundo material e afirma que o espírito é independente do corpo, mas que não está alojado nele, mas incompreensivelmente unida a ele de tal forma que esta mistura confunde o divisível (que é o corpo) e o indivisível (que é o espírito).
Fica difícil defender que Descartes seria um solipsista, para quem o mundo material não teria existência ou objetividade, sendo apenas uma projeção da consciência. Ele não discute, pelo menos nos textos citados acima, a intersubjetividade, mas não se pode acusá-lo de solipsismo. Inclusive no texto sobre as paixões, ele apresenta argumentos fatalistas, algo que vai contra todo solipsismo. Descartes afirma que diante de dois caminhos, um mais perigoso que o outro, nossa razão nos pede para ir pelo menos perigoso. Porém, de acordo com o "decreto da providência", "se formos pelo caminho considerado mais seguro, seremos certamente roubados, e que, ao contrário, poderemos passar pelo outro sem qualquer perigo". Esse fatalismo entra em contradição com o pensamento solipsista.

O mundo como uma grande máquina
Essa metáfora é usada por Descartes para levar seu leitor a pensar na existência de Deus, ou glorificá-lo. Como escreveu em francês e não em latim, Descartes não parece preocupado em escrever para os doutos, mas para os leigos em filosofia e matemática. Nesse sentido, procurou usar uma metáfora que facilitasse a compreensão. Assim, ao mostrar para um operário um relógio e perguntar a ele quem o criou, este irá dizer, naturalmente, que foi um artífice.  Utilizando seu método para ir do particular para o geral, ao se referir ao Universo como uma "grande máquina perfeita", pretende que esse operário conclua racionalmente que se faz necessário por trás do universo a existência de um grande artífice, não sendo, portanto, o  fruto do acaso.
A metáfora, portanto, não visa pensar a terra como algo desprovido de vida ou de espiritualidade, como alguns de seus críticos afirmam, mas justamente o oposto. E como foi possível salientar no item anterior, não faz sentido também afirmar que Descartes cria o antropocentrismo onde o homem está no comando e não mais Deus. Se tal informação fosse verdadeira, não haveria o fatalismo que apresenta no estudo sobre as paixões.

A Europa em 1956, ano do nascimento de Descartes
Descartes cresceu em um momento histórico em que os países baixos buscavam se separar da Espanha, já existia conflitos entre católicos e protestantes, a América já tinha sido "descoberta" e estava sendo explorada por Portugal e Espanha, entre tantos outros. As companhias das Índias, por exemplo, que monopolizavam o controle de preços dos gêneros coloniais em toda a Europa foi criada em 1602, quando Descartes tinha apenas 6 anos de idade. Porém, muitos autores culpam Descartes pela dominação de outros povos pela Europa e até pelas crises sociais e ambientais contemporâneas. Uma das poucas luzes no fim desse túnel é o filósofo Gilles-Gaston Gramger, que na introdução do livro discurso do método (col. os pensadores) afirma que
a procura do lucro e da mecanização rude das relações entre os homens e das relações dos homens com o mundo não poderia evidentemente ser confundida com a filosofia de Descartes, exceto por uma espécie de grotesco mal-entendido.
Infelizmente, esse mal-entendido é generalizado hoje em dia. Mas é evidente que Descartes foi um homem de seu tempo, porém, sua filosofia parece muito mais voltada para uma possível "laicização do saber". Apesar de muito religioso, entra em conflito com o catolicismo medieval e com o ensino escolástico afirmando em uma carta que concebeu uma filosofia "de maneira que pudesse ser recebida em todo lugar, mesmo entre os turcos, sem ofender a ninguém". Assim, o seu método de pesquisa será diferente daquele adotado pelo "homem de letras" que, dentro de seu gabinete, faz especulações "que não lhe trazem nenhuma consequência senão talvez a de lhe proporcionarem tanto mais vaidade quanto mais distanciadas do senso comum." (discurso do método - parte I)

O método de Descartes
Ao invés do método escolástico, Descarte inicia seu estudo pelo "livro do mundo", aproveitando sua juventude e o dinheiro que herdou para viajar, entrando em contato com diferentes experiências humanas. A partir delas, demonstra respeito por outras opiniões e costumes, afirmando, por exemplo que "todos os que possuem sentimentos muito contrários aos nossos, nem por isso são bárbaros ou selvagens, mas que muitos usam, tanto ou mais do que nós, a razão". (discurso do método - parte I)
Nessa citação, podemos notar que o hábito de classificar o outro como "bárbaro" ou "selvagem" já estava interiorizado no discurso eurocêntrico da modernidade, não sendo, portanto, Descartes que o introduz na filosofia. Além disso, deixa evidente, que, para ele,  outros povos são capazes de usar tanto ou mais a razão do que o europeu.
Apesar desse respeito pela diversidade de opiniões e de experiências humanas, Descartes não encontra nelas a verdade que almejava, apenas verdades relativas, assim como não encontrou no ensino escolástico e na teologia do catolicismo. Decidido a construir seu próprio caminho para chegar a ela, formula um método. Em primeiro lugar, "jamais acolher alguma coisa como verdade", colocando-a em dúvida até que se apresente de forma clara e distinta ao espírito que a busca. Em segundo lugar, dividir cada uma das dificuldades que for examinada em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias para melhor resolvê-las (para Descartes o espírito é indivisível, ao contrário do corpo). Em terceiro, conduzir por ordem o pensamento, do mais simples aos mais compostos, supondo uma ordem entre eles. E, por fim, fazer enumerações o mais completas e revisões gerais, procurando nada omitir.
E é importante salientar que este método é prescrito para ele mesmo chegar o mais perto possível da verdade, que para ele, como aponta na introdução das "meditações" é provar racionalmente a sobrevivência do espírito após a morte e a existência de Deus. Ele não faz do seu método um caminho para dominar o mundo, ou dominar outros povos, mas pura e simplesmente, se "instruir". E, após elaborar o seu método, afirma que "em todos os nove anos seguintes, não fiz outra coisa senão rolar pelo mundo, daqui para ali, procurando ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se representam." (discurso do método - terceira parte).
Essa citação evidencia que Descartes, apesar da origem burguesa e da não necessidade de trabalhar para viver, pode ser um contemplador do mundo. E, da mesma forma que foi um leitor de Santo Agostinho, mesmo não o citando em seus textos, ouso levantar a hipótese que ele conhecia também a psicosofia presente em livros como a Baghavad Gita ou outro texto védico, pois demonstra um desinteresse pela vida material similar a de um hinduista.

Seria Descartes cartesiano?
"embora tenha muitas vezes  explicado algumas de minhas opiniões a pessoas de ótimo espírito, e, enquanto eu lhes falava, pareciam entendê-las mui distintamente, todavia, quando as repetiam, notei que quase sempre as mudavam de tal sorte que não mais podia confessá-las como minhas. A esse propósito, muito estimo pedir aqui, aos nossos vindouros, que jamais creiam nas coisas que lhes forem apresentadas como vindas de mim, se eu próprio não as tiver divulgado. " (discurso do método - sexta parte)
Da mesma forma que Marx não se considerava um marxista, é provável que Descartes não se considerava um cartesiano, pelo menos, segundo o que se escreve e fala sobre ele. A seguir apresento algumas frases sobre Descartes retiradas aleatoriamente da internet que parecem contradizer o olhar contemplativo e estoico desse filósofo que conheceu a efervescência sociocultural e política da Europa no final do século XVI e primeira metade do século XVII, mas que procurou manter-se distante dela:
"Assim Descartes inaugura com o ego cogito, o pensamento moderno, humanista e antropocêntrico, no sentido de que o homem está no comando e não mais Deus ou o cosmos."
"A mente cartesiana é egocêntrica e quando pensa no outro sua avaliação é sempre sobre a vantagem que poderá obter da situação. "
"Para Capra  o ponto de vista cartesiano desempenhou uma forte pressão para o atual desequilíbrio cultural por qual passa a humanidade".

"A divisão de Descartes entre matéria e mente (res cogitans e res extensa) tornou a concepção de universo nada além do que uma máquina, desprovida de propósito, vida ou espiritualidade".
"os principais problemas sociais e ambientais da atualidade, como violência, poluição, crise energética e de assistência à saúde são consequências dessa visão de mundo cartesiana, que nos últimos trezentos anos privilegiou padrões dominantes de poder, fragmentação, controle e competição em nossa sociedade ocidental.

seria o pensamento cartesiano, de fato,  a matriz do pensamento moderno?
Como salientamos, quando Descartes nasceu, a modernidade já tinha mais de cem anos de idade e os fatos atribuídos a ele já estavam em andamento no mundo (dominação de outros povos, dominação da natureza, conflitos sociais etc.). E, apesar disso, seu discurso filosófico é metafísico: o espírito e Deus são os seus principais objetos de reflexão. E em nenhum momento é o Deus católico que ele coloca como sendo o verdadeiro e que este deve ser imposto a outros povos. Enfim, o que se costuma ser atribuído a Descartes está muito mais presente nesta citação famosa de Ruldof Carnap (1891-1970), conhecido como um filósofo neopositivista: "a questão do Absoluto é um problema falso ou aparente que não merece o valor da nossa atenção. A filosofia só se deveria ocupar com aquilo que fosse perceptível aos nossos sentidos ― tudo aquilo que está para além da objetividade seria catalogado como 'absurdo'. Só não seria absurdo aquilo que se pudesse medir, que fosse mensurável."


São Carlos, 20 de novembro de 2016 - dia de Santo Edmundo que, apesar de sempre atacado e ter sido condenado à morte, permaneceu fiel à justiça e a sua fé.