Adilson Marques - asamar_sc@hotmail.com
para meu amigo Moab José
Não é possível compreender a filosofia e o método científico proposto por René Descartes (1596-1650) sem compreender a estrutura metafísica de seu pensamento, o que aparece de forma mais evidente no texto Meditações (1641), mas também no Discurso do Método (1637). E a suposta separação entre espírito e corpo, atribuída a Descartes, é real, pois ele defende que o espírito sobrevive à morte física, logo, seriam duas entidades distintas. Porém, durante a vida encarnada, afirma que o espírito que é indivisível se encontra tão misturado ao corpo, que seria divisível, que é praticamente impossível separar o que é de um e o que é de outro, abordando, inclusive, a influência dos estados emocionais, como a alegria e a tristeza, sobre o corpo físico, em seu estudo sobre as paixões (1649).
As seis meditações nas quais coloca em prática
o seu método de estudo são as seguintes:
Na apresentação do texto, ele apresenta seu objetivo: provar
racionalmente a sobrevivência do espírito após a morte e a existência de Deus;
Na primeira, abordará as coisas que podem ser colocadas em dúvida, como as informações que nos vem pelos sentidos ou pela imaginação e que formam as opiniões de maneira geral;
Na segunda, a partir de seus argumentos racionais e metódicos, procura demonstrar que o espírito é independente do corpo e que o pensamento é o seu atributo;
Na terceira, aprofunda sua reflexão, rompendo com o solipsismo ao concluir que o mundo exterior ou material existe e que Deus existe, sendo o criador do universo e inclusive do ser humano;
Na quarta, partindo da premissa que Deus é perfeito e bom e não um enganador, abordará que o verdadeiro e o falso não é obra de Deus, mas do mal uso do livre-arbítrio pelo ser humano;
Na quinta, iniciará sua reflexão sobre o mundo material concluindo que a essência das coisas materiais foi instituída por Deus e não pelo pensamento humano e, por fim,
Na sexta, conclui pela existência do mundo material e afirma que o espírito é independente do corpo, mas que não está alojado nele, mas incompreensivelmente unida a ele de tal forma que esta mistura confunde o divisível (que é o corpo) e o indivisível (que é o espírito).
Na primeira, abordará as coisas que podem ser colocadas em dúvida, como as informações que nos vem pelos sentidos ou pela imaginação e que formam as opiniões de maneira geral;
Na segunda, a partir de seus argumentos racionais e metódicos, procura demonstrar que o espírito é independente do corpo e que o pensamento é o seu atributo;
Na terceira, aprofunda sua reflexão, rompendo com o solipsismo ao concluir que o mundo exterior ou material existe e que Deus existe, sendo o criador do universo e inclusive do ser humano;
Na quarta, partindo da premissa que Deus é perfeito e bom e não um enganador, abordará que o verdadeiro e o falso não é obra de Deus, mas do mal uso do livre-arbítrio pelo ser humano;
Na quinta, iniciará sua reflexão sobre o mundo material concluindo que a essência das coisas materiais foi instituída por Deus e não pelo pensamento humano e, por fim,
Na sexta, conclui pela existência do mundo material e afirma que o espírito é independente do corpo, mas que não está alojado nele, mas incompreensivelmente unida a ele de tal forma que esta mistura confunde o divisível (que é o corpo) e o indivisível (que é o espírito).
Fica difícil defender que
Descartes seria um solipsista, para quem o mundo material não teria existência
ou objetividade, sendo apenas uma projeção da consciência. Ele não discute,
pelo menos nos textos citados acima, a intersubjetividade, mas não se pode
acusá-lo de solipsismo. Inclusive no texto sobre as paixões, ele apresenta
argumentos fatalistas, algo que vai contra todo solipsismo. Descartes afirma
que diante de dois caminhos, um mais perigoso que o outro, nossa razão nos pede
para ir pelo menos perigoso. Porém, de acordo com o "decreto da providência",
"se formos pelo caminho considerado mais seguro, seremos certamente roubados,
e que, ao contrário, poderemos passar pelo outro sem qualquer perigo". Esse
fatalismo entra em contradição com o pensamento solipsista.
O mundo como uma
grande máquina
Essa metáfora é usada por
Descartes para levar seu leitor a pensar na existência de Deus, ou glorificá-lo.
Como escreveu em francês e não em latim, Descartes não parece preocupado em
escrever para os doutos, mas para os leigos em filosofia e matemática. Nesse
sentido, procurou usar uma metáfora que facilitasse a compreensão. Assim, ao mostrar
para um operário um relógio e perguntar a ele quem o criou, este irá dizer,
naturalmente, que foi um artífice. Utilizando seu método para ir do particular
para o geral, ao se referir ao Universo como uma "grande máquina perfeita",
pretende que esse operário conclua racionalmente que se faz necessário por trás
do universo a existência de um grande artífice, não sendo, portanto, o fruto do acaso.
A metáfora, portanto, não visa
pensar a terra como algo desprovido de vida ou de espiritualidade, como alguns
de seus críticos afirmam, mas justamente o oposto. E como foi possível
salientar no item anterior, não faz sentido também afirmar que Descartes cria o
antropocentrismo onde o homem está no comando e não mais Deus. Se tal
informação fosse verdadeira, não haveria o fatalismo que apresenta no estudo
sobre as paixões.
A Europa em 1956, ano do nascimento de Descartes
Descartes cresceu em um momento
histórico em que os países baixos buscavam se separar da Espanha, já existia conflitos
entre católicos e protestantes, a América já tinha sido "descoberta"
e estava sendo explorada por Portugal e Espanha, entre tantos outros. As
companhias das Índias, por exemplo, que monopolizavam o controle de preços dos
gêneros coloniais em toda a Europa foi criada em 1602, quando Descartes tinha
apenas 6 anos de idade. Porém, muitos autores culpam Descartes pela dominação
de outros povos pela Europa e até pelas crises sociais e ambientais
contemporâneas. Uma das poucas luzes no fim desse túnel é o filósofo
Gilles-Gaston Gramger, que na introdução do livro discurso do método (col. os
pensadores) afirma que
a procura do
lucro e da mecanização rude das relações entre os homens e das relações dos
homens com o mundo não poderia evidentemente ser confundida com a filosofia de
Descartes, exceto por uma espécie de grotesco mal-entendido.
Infelizmente, esse mal-entendido
é generalizado hoje em dia. Mas é evidente que Descartes foi um homem de seu
tempo, porém, sua filosofia parece muito mais voltada para uma possível
"laicização do saber". Apesar de muito religioso, entra em conflito
com o catolicismo medieval e com o ensino escolástico afirmando em uma carta
que concebeu uma filosofia "de maneira que pudesse ser recebida em todo
lugar, mesmo entre os turcos, sem ofender a ninguém". Assim, o seu método
de pesquisa será diferente daquele adotado pelo "homem de letras"
que, dentro de seu gabinete, faz especulações "que não lhe trazem nenhuma
consequência senão talvez a de lhe proporcionarem tanto mais vaidade quanto
mais distanciadas do senso comum." (discurso do método - parte I)
O método de Descartes
Ao invés do método escolástico,
Descarte inicia seu estudo pelo "livro do mundo", aproveitando sua
juventude e o dinheiro que herdou para viajar, entrando em contato com diferentes
experiências humanas. A partir delas, demonstra respeito por outras opiniões e
costumes, afirmando, por exemplo que "todos os que possuem sentimentos
muito contrários aos nossos, nem por isso são bárbaros ou selvagens, mas que
muitos usam, tanto ou mais do que nós, a razão". (discurso do método -
parte I)
Nessa citação, podemos notar que o
hábito de classificar o outro como "bárbaro" ou "selvagem"
já estava interiorizado no discurso eurocêntrico da modernidade, não sendo,
portanto, Descartes que o introduz na filosofia. Além disso, deixa evidente, que,
para ele, outros povos são capazes de
usar tanto ou mais a razão do que o europeu.
Apesar desse respeito pela
diversidade de opiniões e de experiências humanas, Descartes não encontra nelas
a verdade que almejava, apenas verdades relativas, assim como não encontrou no
ensino escolástico e na teologia do catolicismo. Decidido a construir seu próprio
caminho para chegar a ela, formula um método. Em primeiro lugar, "jamais
acolher alguma coisa como verdade", colocando-a em dúvida até que se
apresente de forma clara e distinta ao espírito que a busca. Em segundo lugar,
dividir cada uma das dificuldades que for examinada em tantas parcelas quantas
possíveis e quantas necessárias para melhor resolvê-las (para Descartes o
espírito é indivisível, ao contrário do corpo). Em terceiro, conduzir por ordem
o pensamento, do mais simples aos mais compostos, supondo uma ordem entre eles.
E, por fim, fazer enumerações o mais completas e revisões gerais, procurando
nada omitir.
E é importante salientar que este
método é prescrito para ele mesmo chegar o mais perto possível da verdade, que
para ele, como aponta na introdução das "meditações" é provar
racionalmente a sobrevivência do espírito após a morte e a existência de Deus.
Ele não faz do seu método um caminho para dominar o mundo, ou dominar outros
povos, mas pura e simplesmente, se "instruir". E, após elaborar o seu
método, afirma que "em todos os nove anos seguintes, não fiz outra coisa
senão rolar pelo mundo, daqui para ali, procurando ser mais espectador do que
ator em todas as comédias que nele se representam." (discurso do método -
terceira parte).
Essa citação evidencia que
Descartes, apesar da origem burguesa e da não necessidade de trabalhar para
viver, pode ser um contemplador do mundo. E, da mesma forma que foi um leitor
de Santo Agostinho, mesmo não o citando em seus textos, ouso levantar a
hipótese que ele conhecia também a psicosofia presente em livros como a
Baghavad Gita ou outro texto védico, pois demonstra um desinteresse pela vida
material similar a de um hinduista.
Seria Descartes cartesiano?
"embora tenha muitas vezes explicado algumas de minhas opiniões a
pessoas de ótimo espírito, e, enquanto eu lhes falava, pareciam entendê-las mui
distintamente, todavia, quando as repetiam, notei que quase sempre as mudavam
de tal sorte que não mais podia confessá-las como minhas. A esse propósito, muito
estimo pedir aqui, aos nossos vindouros, que jamais creiam nas coisas que lhes forem apresentadas como vindas
de mim, se eu próprio não as tiver divulgado. " (discurso do método -
sexta parte)
Da mesma forma que Marx não se
considerava um marxista, é provável que Descartes não se considerava um
cartesiano, pelo menos, segundo o que se escreve e fala sobre ele. A seguir
apresento algumas frases sobre Descartes retiradas aleatoriamente da internet
que parecem contradizer o olhar contemplativo e estoico desse filósofo que
conheceu a efervescência sociocultural e política da Europa no final do século
XVI e primeira metade do século XVII, mas que procurou manter-se distante dela:
"Assim
Descartes inaugura com o ego
cogito, o pensamento moderno, humanista e antropocêntrico, no sentido de
que o homem está no comando e não mais Deus ou o cosmos."
"A mente cartesiana é egocêntrica e quando
pensa no outro sua avaliação é sempre sobre a vantagem que poderá obter da
situação. "
"Para Capra o ponto de vista cartesiano desempenhou uma
forte pressão para o atual desequilíbrio cultural por qual passa a humanidade".
"A divisão de Descartes entre matéria e mente (res cogitans e res extensa) tornou a concepção de universo nada além do que uma máquina, desprovida de propósito, vida ou espiritualidade".
"os
principais problemas sociais e ambientais da atualidade, como violência,
poluição, crise energética e de assistência à saúde são consequências dessa
visão de mundo cartesiana, que nos últimos trezentos anos privilegiou padrões
dominantes de poder, fragmentação, controle e competição em nossa sociedade
ocidental.
seria o pensamento cartesiano, de fato, a matriz do pensamento moderno?
Como
salientamos, quando Descartes nasceu, a modernidade já tinha mais de cem anos
de idade e os fatos atribuídos a ele já estavam em andamento no mundo (dominação
de outros povos, dominação da natureza, conflitos sociais etc.). E, apesar
disso, seu discurso filosófico é metafísico: o espírito e Deus são os seus
principais objetos de reflexão. E em nenhum momento é o Deus católico que ele
coloca como sendo o verdadeiro e que este deve ser imposto a outros povos.
Enfim, o que se costuma ser atribuído a Descartes está muito mais presente nesta
citação famosa de Ruldof Carnap (1891-1970), conhecido como um filósofo neopositivista:
"a questão do Absoluto é um
problema falso ou aparente que não merece o valor da nossa atenção. A filosofia
só se deveria ocupar com aquilo que fosse perceptível aos nossos sentidos ―
tudo aquilo que está para além da objetividade seria catalogado como 'absurdo'.
Só não seria absurdo aquilo que se pudesse medir, que fosse mensurável."
São Carlos, 20 de novembro de 2016 - dia de Santo
Edmundo que, apesar de sempre atacado e ter sido condenado à morte, permaneceu
fiel à justiça e a sua fé.
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