quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

A importância de Enrique Dussel e da "ecologia de saberes" no trabalho espiritualista da ONG Círculo de São Francisco

Um dos projetos mais instigantes realizados pela ONG Círculo de São Francisco, aconteceu entre os anos de 2005 e 2012, e resultou na edição de sete livros. O projeto foi denominado "Cultura de Paz e Mediunidade: imagens e imaginário do invisível". Ele foi realizado através das técnicas da história oral com dois grupos-sujeitos: 1 - com pessoas que se dizem médiuns, ou seja, que seriam capazes de intermediar um contato com o "mundo dos mortos", coletando informações sobre a experiência de vida, a fenomenologia mediúnica, o preconceito e o estigma vivenciado ao longo da vida pelo fato de serem médiuns e, 2 - com os supostos espíritos que estes médiuns davam "passagem" durante o transe mediúnico, coletando informações sobre diferentes religiões, a suposta vida no "outro lado da vida" etc. Com o material coletado nesse projeto foram editados, como salientado, sete livros. 
Esse trabalho foi realizado sob inspiração, de certa forma, do pensamento transmoderno do filósofo argentino Enrique Dussel que critica o eurocentrismo e procura valorizar uma relação horizontal entre as cosmovisões, construindo uma alteridade e uma ética libertária. Suas teorias sobre a "exterioridade" e a "analética", ou seja, o estar "face a face" com o outro em uma relação de respeito e de valorização da alteridade, foram importantes para realizar esse trabalho tão singular com um grupo social que, de certa forma, está excluído pela "razão hegemônica".
Neste trabalho procuramos entrevistar médiuns kardecistas (talvez os mais inclinados a um pensamento eurocêntrico), mas também médiuns atuantes na umbanda e também aqueles que atuam de forma independente em suas próprias casas, não seguindo nenhuma orientação doutrinária, mas apenas as orientações de seus "guias espirituais" e também aqueles que atuam dentro de um princípio de espiritualidade laica, como é a praticada na ONG Círculo de São Francisco. E entre os supostos espíritos entrevistados, também prevaleceu a visão "analética" dusseliana, sem nenhuma discriminação ou pré-conceitos que estabelecem uma hierarquia entre os "espíritos", como se existissem os "superiores" e os "inferiores". Assim, entrevistamos com o mesmo respeito supostos médicos kardecistas, mas também os pretos-velhos, os orientais, os indígenas, os exus e outros "seres incorpóreos" mais atuantes na umbanda.
Alguns destes livros podem ser acessados na forma de e-books através do link abaixo:
https://issuu.com/programahomospiritualis/docs
E essa possibilidade de se abrir para um horizonte novo, não eurocentrado foi, talvez, o grande mérito do projeto. Isso não significa desmerecer a produção do pensamento europeu, do qual estamos também inseridos, mas reconhecer como este pensamento muitas vezes legitima a destruição do Outro e desvaloriza outras formas de pensamento. A obra de Dussel, muito mais valorizada no campo das ciências das religiões e da teologia, tem muito a contribuir no meio espiritualista, por ser um pensador que traz uma perspectiva não-eurocêntrica e que busca superar o que Boaventura de Souza Santos chamou de "pensamento abissal", necessária para construir uma "ecologia dos saberes".

São Carlos, 04 de janeiro de 2016 - dia de Santa Angela de Foligno, uma das mais representativas franciscanas da idade média

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